O índio em Guajará-Mirim (Pakaa Nova)
Os Wari' são muitas vezes designados como Pakaa Nova, por terem sido avistados pela primeira vez no rio homônimo, afluente da margem direita do Mamoré, no estado de Rondônia. Mas é como Wari', palavra que em sua língua significa "gente", "nós", que gostam de ser chamados, e é dessa forma que são conhecidos pelos "civilizados" (assim designam os brancos em português) que mantêm com eles um convívio mais estreito. Vivem hoje aldeados em torno de sete Postos da Funai administrados pela Ajudância de Guajará-Mirim, Rondônia, e na Área Indígena Sagarana, na confluência dos rios Mamoré e Guaporé, administrada pela Diocese de Guajará-Mirim.
Os
povos Txapakura. Os Wari' constituem um dos poucos remanescentes da família
lingüística Txapakura, dado que a maior parte dos falantes de línguas dessa
família encontrava-se extinta já no início de nosso século.
Atualmente, existem somente quatro grupos Txapakura: os Wari', os Torá, os Moré
ou Itenes, que vivem na margem esquerda do rio Guaporé, um pouco acima da confluência
com o Mamoré, em território boliviano, e os OroWin. Os últimos, encontrados
em 1963 na região das cabeceiras do rio Pacaas Novos, foram exterminados por
dois ataques dos brancos, restando não mais do que doze indivíduos adultos e
algumas crianças, aldeados hoje no Posto Indígena São Luis, no alto rio Pacaas
Novos. Existem ainda alguns indivíduos, dispersos entre a aldeia de Sagarana,
o PI Sotério e a cidade de Guajará-Mirim, que se dizem Cujubim, e que de sua
língua falam apenas alguns vocábulos, o bastante, entretanto, para sabermos
que se trata de língua dessa família.
As notícias que se tem dos povos de língua Txapakura são poucas e vagas: viajantes
registram a sua presença e contam sobre as relações que mantinham com os brancos,
enumerando vez por outra aspectos da cultura material. Somente os grupos conhecidos
como Huanyam, os "Chapakura", e os Moré foram visitados por etnógrafos.
Segundo o etnólogo Curt Nimuendajú, o centro geográfico dos povos txapakura
parece ter sido ambas as margens do rio Guaporé, em seu médio e baixo curso,
apesar de alguns grupos, como os Torá e os já extintos Urupá, estarem associados
ao rio Madeira e seus afluentes desde os séculos XVIII e XIX. Muitos dos povos
Txpakura tiveram contato com o homem branco já no século XVII; viveram em missões
espanholas e portuguesas, aliaram-se aos brancos, fugiram e foram capturados
ou foram exterminados por epidemias e ataques armados.
Localização
e população. Por volta do final do século passado, os Wari' ocupavam a seguinte
região, no sudoeste da Amazônia: a bacia do rio Lage, afluente da margem direita
do Mamoré, as bacias do rio Ouro Preto, igarapé da Gruta, igarapé Santo André
e rio Negro, afluentes do baixo e médio curso da margem direita do rio Pacaas
Novos, além das cabeceiras dos rios Ribeirão e Formoso. Por volta dessa época
houve uma migração de parte da população para os rios Dois Irmãos e Novo, afluentes
da margem esquerda do Pacaas Novos.
Com a invasão de seringueiros a partir das primeiras décadas desse século, os
Wari' foram se deslocando para as cabeceiras dos rios, locais de mais difícil
acesso, até o momento em que foram "pacificados" por missionários
e agentes do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), entre o final da década de
1950 e início dos anos 1960. Reduzidos, devido às epidemias, a menos da metade
da população original, os Wari' passaram, em poucos anos, a viver em torno dos
postos do SPI.
Atualmente vivem distribuídos por oito aldeamentos, localizados em cinco diferentes
Terras Indígenas, todas no estado de Rondônia, conforme o quadro abaixo. A Terra
Indígena Sagarana, onde está o aldeamento de mesmo nome, administrado pela Diocese
de Guajará-Mirim, é a única ainda não homologada (sua situação legal é "Delimitada").
Terra Indígena |
Área da TI |
Homologada em |
Aldeamento |
TI Pacaas Novos |
279.906 ha |
1991 |
PI
Tanajura |
TI Negro-Ocaia |
104.064 ha |
1981 |
PI Negro-Ocaia |
TI Igarapé Lage |
107.321 ha |
1990 |
PI Lage |
TI Ribeirão |
47.863 ha |
1981 |
PI Ribeirão |
TI Sagarana |
18.120 ha |
- |
Sagarana |
De
acordo com o censo realizado pela FUNAI no ano de 1998, os Wari' somavam cerca
de 1930 indivíduos. Um censo anterior, do mesmo órgão, em 1996, indicava 2.050
pessoas.Dos
primeiros contatos à "pacificação". Os Wari' foram mencionados
pela primeira vez pelo Coronel Ricardo Franco em 1798, localizados nas margens
do rio Pacaas Novos. No entanto, até o início de nosso século mantiveram-se
isolados, possivelmente porque viviam em áreas de acesso difícil ou de pouco
interesse econômico. Tudo mudou com a descoberta do processo de vulcanização
da borracha, em meados do século passado, que provocou uma verdadeira corrida
em busca da matéria prima nas florestas; o rio Madeira foi escolhido como uma
via privilegiada de acesso. Foi dado início à construção da ferrovia Madeira-Mamoré
para ligar a localidade de Santo Antônio do Madeira a Guajará-Mirim, tendo como
objetivo o escoamento da produção de látex até o ponto de Manaus. Em 1919, ocorreu
o primeiro atrito documentado entre os Wari' e os trabalhadores da ferrovia,
que raptaram vários índios e os levaram para ser exibidos na cidade. Justamente
no ano da inauguração da ferrovia, 1912, houve uma queda abrupta do interesse
pelo látex brasileiro, suplantado economicamente pela produção malasiana. Muitos
seringueiros foram obrigados a abandonar suas atividades, e os Wari', que tinham
sido forçados a se deslocar para territórios de mais difícil acesso, nas cabeceiras
dos rios, puderam reocupar algumas das antigas aldeias.
Nos anos 40, com a ocupação da Malásia pelos japoneses, ocorreu o segundo boom
da borracha, e muitos seringueiros começaram a subir o rio Pacaas Novos e seu
afluente Ouro Preto, de tal modo que, por volta de 1950, o primeiro era o afluente
do Mamoré mais densamente ocupado. Foi o auge dos conflitos entre os Wari' e
os "civilizados". Seringalistas organizavam expedições de extermínio
em que atacavam aldeias ao amanhecer, algumas vezes portando metralhadoras,
matando grande parte de seus habitantes. A vingança dos Wari' não tardava: seringueiros
e trabalhadores da ferrovia eram encontrados mortos com seus corpos crivados
de flechas. A tensão do conflito obrigou o SPI a tomar providências, iniciando
o processo de "pacificação" com a criação de "postos de atração"
em diversas localidades.
O primeiro contato pacífico só foi estabelecido em 1956, com a participação
dos missionários fundamentalistas da Missão Novas Tribos do Brasil. Na época
do contato, os Wari' ocupavam aldeias situadas ao longo do rio Lage (afluente
da margem direita do Mamoré) e seus afluentes, nas cabeceiras do rio Ribeirão,
em afluentes da margem direita do rio Pacaas Novos (alto Ouro Preto, Mana to',
igarapé Santo André, rio Negro e seu afluente Ocaia) e no rio Dois Irmãos, afluente
da margem esquerda do mesmo rio. O processo de "pacificação" durou
mais de dez anos (até 1969, quando foram trazidos os últimos índios arredios):
os Wari' viviam espalhados em um vasto território e, mesmo depois de estabelecidos
nos Postos, retornavam à floresta quando se sentiam ameaçados, especialmente
pelas epidemias que, na época do contato, exterminaram certamente mais de dois
terços da população.Os
grupos locais e os subgrupos. Os Wari' não têm um nome que designe o grupo
como um todo, isso que se costuma chamar de tribo ou, mais modernamente, de
etnia. A palavra wari' designa o pronome da primeira pessoa do plural inclusivo,
"nós", que significa também 'ser humano', 'gente'. É o modo como são
conhecidos na região e como gostam de ser chamados pelos brancos.
A unidade étnica mais ampla definida por eles é o que aqui chamaremos de subgrupo.
Não há um nome genérico para subgrupo, mas somente para 'pessoa de outro subgrupo',
tatirim, que traduzimos como 'estrangeiro'.
Cada subgrupo tem um nome. São hoje os OroNao, os OroEo, os OroAt, os OroMon,
os OroWaram e os OroWaramXijein (oro é uma partícula coletivizadora, que pode
ser traduzida como 'povo', 'grupo'). Alguns indivíduos identificam-se com dois
outros subgrupos que não mais existem: os OroJowin e os OroKaoOroWaji.
Cada subgrupo relacionava-se até o momento da "pacificação" - e de
certo modo ainda hoje - a um território específico, constituído por um conjunto
de áreas nominadas, habitadas por grupos locais. Os grupos locais tinham como
núcleo um conjunto de irmãos de sexo masculino, casados, muitas vezes, com um
grupo de irmãs. A poliginia, especialmente a sororal (isto é, o casamento simultâneo
com uma ou mais irmãs da esposa), era freqüente. Após o casamento, costumava-se
alternar a moradia, ora com os pais da mulher, ora com os pais do homem. Não
se pode falar, portanto, em regra de residência. Um grupo permanecia em um mesmo
local entre um e cinco anos, e depois desse período sua composição e local de
aldeamento variavam. Os aldeamentos localizavam-se sempre na terra firme amazônica,
às margens de pequenos rios perenes. Consistiam em um grupo de residências ocupadas
por famílias nucleares e uma casa dos homens, dormitório dos rapazes solteiros
e lugar de reunião de homens adultos.
Nas proximidades havia sempre uma roça de milho, base da subsistência wari'.
Na verdade, era o solo propício para o plantio de milho - terra preta - que
determinava a escolha do local de aldeamento.
A associação do subgrupo ao território é algo insistentemente marcado pelos
Wari', e o antônimo de "estrangeiro", tatirim, membro de outro subgrupo,
é "conterrâneo", win ma. Mas as fronteiras desses territórios podiam
ser franqueadas, de tal modo que, se uma determinada área normalmente associada
a um subgrupo passasse a ser ocupada por um conjunto de pessoas cujo núcleo
fossem os homens de outro subgrupo, essa área passava a ser reconhecida como
território deste último.
Não há uma regra unívoca que defina o pertencimento ao subgrupo. Ora se diz
que os filhos pertencem ao subgrupo do pai, ora ao da mãe, ou então àquele associado
ao território em que nasceram. O que acontece é que a identidade de uma pessoa
vai sendo constituída durante a vida, por meio da convivência com seus conterrâneos,
especialmente através da comensalidade. Isso não quer dizer, como pode parecer,
que os Wari' assumam que a filiação ao subgrupo pode variar durante a vida.
O que acontece é uma espécie de identidade múltipla, onde diferentes pessoas
classificam de modo distinto determinado indivíduo.
Sua distribuição atual ilustra bem o tipo de relação que os Wari' estabelecem
entre o espaço físico e o subgrupo enquanto unidade. Os subgrupos do tempo da
pacificação continuam a existir. Os Wari' se dizem OroEo, OroAt, OroNao, OroWaram,
OroMon e OroWaramXijein. A maioria dos OroEo, OroAt e parte dos OroNao vive
no posto Negro-Ocaia, que se situa na fronteira do território outrora ocupado
pelos OroNao e próximo à terra dos OroEo e dos OroAt. Outra parte dos OroNao
vive na margem esquerda do rio Pacaas Novos, para onde se deslocaram no final
do século passado, ocupando os postos Santo André e Tanajura. Os OroWaram vivem
em sua maioria no posto Lage, perto do território em que viviam os OroWaramXijein.
Os OroMon vivem, em sua maioria, no posto Ribeirão, região que os Wari' ocupavam
esporadicamente, quando caçavam, mas onde não faziam roças. Os OroWaramXijein
vivem parte com os OroWaram, no Lage, e parte com os OroMon, no Ribeirão. Quando
alguém de fora, um estrangeiro, refere-se ao posto Lage, por exemplo, diz que
é a terra dos OroWaram. "Vou dançar nos OroWaram", dizem os Wari'
que se dirigem ao posto Lage para uma festa.
Os diferentes subgrupos relacionam-se ritualmente por meio de três tipos de
festas: tamara, hüroroin e hwitop. Em linhas gerais, anfitriões de um subgrupo
preparam chicha (bebida de milho), fermentada (hüroroin e hwitop) ou não (tamara),
para oferecerem a convidados de outro subgrupo. A relação entre convidados e
anfitriões é de hostilidade ritualizada, onde os últimos procuram embriagar
e humilhar os primeiros, que estariam recebendo uma espécie de castigo por terem
atuado inicialmente como predadores dos anfitriões: disfarçados de animais ou
atacando eles próprios os animais dos anfitriões, e gracejando com as suas mulheres.
Quando um convidado tomba inconsciente por excesso de bebida, o anfitrião diante
dele exclama: "eu o matei". Essas festas realizam-se hoje entre habitantes
de distintos postos que, como vimos, são associados aos diferentes subgrupos.
A sociedade wari' é marcadamente igualitária, sem chefes, grupos de idade, grupos
rituais ou especialistas de qualquer tipo.A
guerra. O inimigo é pensado como um Wari' que se distanciou espacialmente
e com quem as trocas foram interrompidas. Os Wari' equacionam os inimigos às
presas animais. No passado, quando os Wari' praticavam a guerra, os inimigos
eram flechados e mortos e, quando possível, partes deles eram levadas às aldeias
dos matadores (todos aqueles que participaram da expedição) para serem comidas
por suas mulheres e por aqueles que haviam permanecido em casa. Os matadores,
ao retornar, entravam em um período de reclusão, onde permaneciam deitados a
maior parte do tempo na casa-dos-homens, evitando muitos movimentos e especialmente
ferimentos, de modo a manter em seus corpos o sangue do inimigo morto.
Esse sangue, associado à chicha não-fermentada, que constituía praticamente
o único alimento dos matadores, fazia-os engordar, tornando-os homens fortes
e viris. Nesse período era proibido também o ato sexual, que provocaria a perda
do sangue do inimigo tornado sêmen, que então iria engordar não a eles, mas
a suas mulheres e amantes.
Por conter em si o sangue do inimigo morto, o matador estava interditado de
comer da sua presa, o que consistiria em ato de auto-canibalismo e provocaria
a morte. Todos os demais, com exceção das crianças, podiam comer da carne do
inimigo, que era assada e ingerida em grandes pedaços, marcando a diferença
entre esse repasto e o canibalismo funerário, e associando-o à ingestão de presas
animais.
Após a reclusão, que terminava quando as mulheres se diziam cansadas de preparar
continuamente grandes quantidades de chicha, e quando os homens se sentiam gordos
o suficiente, o espírito do inimigo morto permanecia associado ao matador, como
um filho: acompanhava-o por toda parte e comia da sua comida.
Tradicionalmente os Wari' faziam guerra com povos vizinhos, em sua maioria Txapakura
e Tupi. Os inimigos mais citados por eles são os tupi Karipuna e os Uru-Eu-Wau-Wau.
Com a invasão de suas terras por seringueiros no início do século, perderam
contato com esses inimigos e a guerra passou a ser direcionada contra os brancos,
também classificados como inimigos, wijam. Essa guerra durou até a "pacificação",
e constituiu um de seus motores centrais: diante dos corpos mutilados de vizinhos
e parentes, que os Wari' matavam muitas vezes em represália aos ataques armados
que massacravam suas aldeias de madrugada, os agentes governamentais e poderosos
locais apressaram-se a atrair os Wari', não só para acabar com as mortes, mas
principalmente para abrir caminho à expansão das atividades econômicas locais,
especialmente a extração da borracha.O
canibalismo funerário. Os Wari' comiam não só os inimigos que matavam, mas
também os mortos do grupo. O rito tinha início já na doença grave, quando o
moribundo era chorado por parentes consangüíneos e afins. Desde aí, iniciava-se
um canto fúnebre, em que todos se referiam ao doente/morto por termos de consangüinidade,
e relembravam fatos vividos com ele. Diante da morte, o choro se intensificava.
Os parentes próximos, chamados de "parentes verdadeiros" passavam
então a diferenciar-se dos "parentes distantes", categoria que aí
inclui especialmente aqueles efetivamente relacionados pelo casamento. Os primeiros
organizavam o funeral, e os últimos o executavam. Antes que o cadáver pudesse
ser preparado, devia-se aguardar a chegada dos parentes próximos que viviam
em outras aldeias, e que recebiam o aviso da morte por meio desses mesmos afins.
Nesse período, de cerca de dois a três dias, o cadáver apodrecia, e é nesse
estado que era cortado e moqueado pelos afins. Pronta a carne, os parentes próximos
a desfiavam e depositavam-na sobre uma esteira, ao lado de pequenos pedaços
de pamonha de milho assada. Solicitavam então aos parentes distantes que a comessem.
Não se devia pegar a carne com as mãos, mas espetá-la em pauzinhos, levando-a
delicadamente à boca. Os Wari' não gostavam que se comesse do morto com avidez,
como se fosse carne de caça, e o apodrecimento, que aparentemente era conseqüência
de um prolongamento inevitável do velório, já que os parentes que moravam longe
faziam questão de ver o cadáver íntegro, era também um modo de tornar a ingestão
da carne desagradável, às vezes quase impossível. Nesses casos, comia-se só
um pouco, e o resto era queimado, juntamente com os cabelos, órgãos internos
(com exceção do fígado e do coração, que eram comidos), e genitália.
Finda a carne, os parentes próximos decidiam se os ossos seriam queimados e
enterrados com o moquém, ou se seriam macerados e ingeridos com mel. De um modo
geral são os parentes distantes que ingerem os ossos, mas algumas pessoas afirmam
que essa parte do repasto cabia aos netos, que também eram os comedores preferenciais
dos miolos assados do morto.
Após o funeral, iniciava-se o período do "varrer", quando eram queimados
todos os pertences do morto, desde a casa que construíra, o local onde havia
sido assado, até sua roça de milho e os lugares na floresta onde costumava andar
e se sentar. Um luto prolongado, de vários meses ou mesmo anos, terminava diferencialmente
para os diversos parentes, que decidiam quando deveriam voltar a falar normamente
e a participar de festas. Realizavam então o rito de final de luto, quando uma
grande quantidade de presas previamente moqueadas, resultantes de uma caçada
coletiva, eram choradas como se fossem o morto. Essas presas eram depois comidas
não só por não-parentes, mas também pelos consangüíneos próximos. Depois disso
cantava-se e dançava-se e a vida voltava ao normal. O espírito do morto passava
a viver plenamente no mundo subaquático dos mortos, como acontece ainda hoje.
Quando quer vir à terra ver os seus, ou passear, torna-se queixada, sendo caçado
e comidos pelos Wari', e retornando ao mundo dos mortos.
Atualmente, os mortos não são mais comidos, mas enterrados, depois de chorados
por dois ou três dias. O abandono do canibalismo ocorreu pouco tempo depois
da "pacificação".Cosmologia.
A dinâmica que estrutura as relações sociais wari' - o contraste entre a inimizade
relacionada ao assassinato e devoração, e a sociabilidade, relacionada às trocas
de comida, cônjuges e cooperação mútua - estende-se também às relações com outros
seres. Muitas espécies animais, assim como alguns poucos vegetais e certos fenômenos
naturais, são considerados humanos por serem dotados de espírito.
Grande parte da mitologia, dos rituais, e dos processos de cura, giram em torno
da idéia de que, sendo estes seres humanos, os Wari' podem se comunicar e lidar
com eles como lidam com outras categorias de gente.
Espíritos ancestrais e espíritos animais são as categorias de espírito mais
significativas para os Wari'. Apesar de reconhecerem também a existência de
outros tipos de seres dotados de espírito, como plantas, trovão e personagens
míticos, as idéias sobre a sua humanidade tendem a ser vagas em contraste com
as imagens elaboradas dos ancestrais e espíritos animais.
Os espíritos dos mortos residem em uma sociedade paralela formada por aldeias
situadas sob as águas de rios profundos, em áreas ocupadas pelos subgrupos wari'
antes do contato. O líder desse mundo subaquático dos mortos é um gigante chamado
Towira Towira. Ele é a causa última da morte dos Wari', pois recebe o espírito
das pessoas gravemente doentes em uma festa de tipo hüroroin e, como anfitrião,
oferece-lhes chicha de milho fermentada que, se aceita, causa a morte definitiva
do corpo físico. Ao modo das relações de hostilidade ritualizadas entre anfitriões
e convidados nas festas wari', esse encontro com Towira Towira é concebido como
predação simbólica seguida de consumo e posterior ressurreição da presa, já
que os mortos revivem sob a água. Os Wari', por sua vez, consomem os espíritos
subaquáticos, pois quando os ancestrais emergem, o fazem na forma de queixadas.
Como convidados em uma festa, os mortos-queixadas cantam e dançam para os Wari',
permitindo que estes os matem como presas. Um morto-queixada aproxima-se freqüentemente
de um caçador que é seu parente próximo, de modo que sua carne vai alimentar
os seus próprios parentes. Desse modo, o oferecimento de comida e a ajuda mútua
que constituem o cerne da vida familiar wari' continuam depois da morte, transformadas
em uma relação na qual os vivos e os mortos, humanos e animais, alternam nas
posições de anfitrião e convidado, predador e presa.
Temas de reciprocidade e predação também permeiam as idéias wari' sobre os animais
com espírito humano, os jami karawa. Esta categoria inclui o veado, queixada,
caititu, anta, macaco-prego, jaguar, peixes, abelhas e cobras, além de algumas
outras espécies, dependendo do subgrupo do informante. Os jami karawa vivem
em comunidades organizadas em subgrupos, ao modo das aldeias wari' antes do
contato; vivem em casas, fazem roças e festas. Os Wari' vêem os jami karawa
como animais, mas estes percebem a si mesmos como humanos, e os Wari' como animais
ou inimigos. Os jami karawa provocam doenças ao atacar os Wari', flechando-os
magicamente, ou entrando em seus corpos e devorando-os; o resultado é a animalização
da vítima. No caso dos jaguares e cobras, a predação tem como alvo o corpo físico
da vítima e não o seu espírito. Os Wari', por sua vez, matam jami karawa, pois
estes animais constituem o tipo de caça mais apreciado por eles. Antes do contato,
vários tipos de animais eram proibidos como alimento, mas as proibições alimentares
hoje não são mais tão rígidas.
A prática do xamanismo diminuiu nos primeiros anos após o contato, mas a partir
do início dos anos 1980 ocorreu um reavivamento. Na maioria das aldeias, muitas
famílias continuam a depender dos xamãs para o tratamento de doenças causadas
por espíritos animais, já que somente o xamã tem a visão especial que lhe permite
diagnosticar a doença e enxergar os jami karawa na sua forma verdadeira, como
humanos com quem é possível negociar. Praticamente todos os xamãs são homens,
e idiomas de caça, guerra e afinidade permeiam o discurso wari' sobre xamanismo
e espíritos animais. Um homem se torna xamã quando um jami karawa o mata e o
faz reviver, processo tipicamente associado a uma doença grave ou trauma. Quando
o espírito animal tira frutos e outras substâncias de seu próprio corpo e os
implanta no corpo de um Wari', provê essa pessoa de poderes xamânicos e de uma
dupla identidade: torna-a simultaneamente humana e animal da mesma espécie que
a iniciou. Os xamãs tratam as doenças causadas por espíritos animais e por feiticeiros
wari'. Geralmente não curam doenças identificadas como doenças de brancos, que
são tratadas pelos assistentes de enfermagem, enfermeiros e médicos, que utilizam
técnicas de cura ocidentais.Saúde,
dieta e economia. Os problemas de saúde mais comuns são a malária (que algumas
vezes atinge níveis epidêmicos), infecções respiratórias, parasitoses, diarréias
e doenças gastrointestinais. A tuberculose, que inclui formas resistentes, também
tem sido um problema recorrente. No decorrer dos anos, as condições de saúde
têm variado radicalmente, dependendo do grau de assistência médica, especialmente
no âmbito da aldeia. Atualmente, cada posto-aldeamento tem uma pequena farmácia,
onde se oferece assistência médica primária ministrada por um auxiliar de enfermagem
empregado pela agência governamental. Recentemente, jovens wari' passaram a
receber treinamento como assistentes de saúde, modelo vigente há muito na aldeia
de Sagarana, e atuam em seus próprios aldeamentos, ao lado dos auxiliares de
enfermagem ou mesmo sozinhos, quando da ausência destes. Os funcionários da
Casa do Índio da Funai em Guajará-Mirim oferecem diagnósticos e tratamentos
mais especializados, e coordenam programas de vacinação e o trabalho de um grupo
constituído por médico, enfermeiro e dentista, que periodicamente visita as
aldeias wari'. Entre os anos 1983 e 1989, o Projeto Polonoroeste subsidiou melhorias
na infraestrutura médica, a construção de farmácias-enfermarias nas aldeias,
escolas e casas para os funcionários da Funai, além da aquisição de barcos,
motores, caminhões, rádios e geradores para os postos indígenas. Com o fim desse
subsídio, os serviços médicos e outros têm sofrido cortes constantes e dependido
de verbas esporádicas e incertas.
O estado nutricional da maioria dos Wari' varia entre o adequado e o precário.
Desde o contato os Wari' adotaram diversos cultivos, dentre eles a mandioca
brava, o arroz, e várias frutas, além de animais domésticos, como cachorros
e galinhas. O gado foi introduzido em diversas aldeias, mas a criação não tem
tido êxito. As crianças que freqüentam as escolas dos postos recebem merenda
diária, e as famílias wari' consomem alguns alimentos industrializados, apesar
da subsistência ainda depender largamente da caça, pesca, coleta e cultivo de
roças.
Para que os Wari' possam viver de sua terra é preciso que tenham alguma mobilidade
para usufruir os recursos florestais que estão dispersos pelo território. Essa
necessidade de mobilidade está em conflito com a política governamental de concentrar
a população em poucas aldeias permanentes, em locais de fácil acesso de modo
a permitir o deslocamento dos administradores. Alguns desses locais não têm,
em suas imediações, solo adequado para o cultivo, especialmente do milho, base
da subsistência wari', e que exige um solo especial, conhecido como terra preta.
Solo fértil, caça, pesca, lenha e outros recursos tornam-se escassos nas vizinhanças
desses postos permanentes e populosos, com impacto negativo na dieta e na saúde,
que piora com o crescimento da população indígena. Diante disso, os Wari' estão
iniciando um processo legal de requisição de parte de seu território tradicional,
nas margens dos rios Pacaas Novos e Ouro Preto, hoje ocupada por posseiros para
a criação de gado. Pretendem com isso fundar novas aldeias, evitando a escassez
de alimentos e o alto índice de doenças.
Técnicos agrícolas e outros funcionários da FUNAI criaram vários programas para
incentivar a coleta de borracha e de castanha-do-pará, roças coletivas e produção
agrícola para a venda. Os resultados desses projetos são variados. A obtenção
de dinheiro para comprar munição, material de pesca, roupas e outros bens constitui
um problema constante para os Wari'. Muitas famílias coletam e vendem borracha
e castanha-do-pará, mas a instabilidade dos preços não permite que dependam
disso como fonte de renda. Os mais idosos recebem uma aposentadoria, e os jovens
algumas vezes conseguem dinheiro através de trabalho temporário para a Funai
ou para fazendeiros e seringueiros vizinhos. A questão da comercialização de
recursos florestais é polêmica. Nos últimos anos, alguns Wari' têm pressionado
a Funai para permitir o comércio de madeira, mas têm sofrido a oposição de vários
de seus pares. Até o momento, a Funai tem se mantido firme na sua decisão de
proibir o comércio de madeira em larga escala e de evitar a exploração dos Wari'
e de seus recursos por firmas comerciais.Nota
sobre as fontes. Os primeiros estudos antropológicos foram realizados por
dois etnógrafos que viveram com os Wari' no final dos anos 1960 e início dos
anos 1970. Alan Mason estudou a comunidade de Pitop (hoje Tanajura), e sua tese
de doutorado trata da organização social e parentesco dos OroNao. A tese de
doutorado de Bernard Von Graeve trata da história do contato entre os Wari'
e a sociedade nacional, com ênfase especial na história e organização da comunidade
de Sagarana, administrada pela Igreja Católica, é a base de seu livro The Pacaa
Nova.
Em 1986, Denise Maldi Meireles defendeu sua dissertação de mestrado em antropologia
social na Universidade de Brasília, baseada em entrevistas realizadas em diversas
comunidades wari' (Os Pakaas-Novos). Trata de temas tais como a organização
social, a noção de pessoa, mitologia e canibalismo. Em 1989 publicou um estudo
histórico sobre a ocupação da região do rio Guaporé: Guardiães da Fronteira.
Beth Conklin realizou, nos anos de 1985-1987, pesquisa na comunidade de Santo
André, e em outras quatro aldeias wari'. Sua tese de doutorado em antropologia
médica, Images of Health, Illness and Death Among the Wari', analisa experiências
de doença na sociedade wari' antes e depois do contato, e as concepções do corpo
nas relações sociais wari', na doença e no canibalismo funerário, trabalho que
continua em vários artigos posteriores. Seu livro, Consuming Grief: Mortuary
Cannibalism in an Amazonian Society, a ser publicado pela University of Texas
Press, explora o modo como o endocanibalismo se enquadra em um processo de luto
constituído por idéias sobre corpos, espíritos, memória e pela psicologia do
sofrimento.
Em 1986, Aparecida Vilaça iniciou pesquisa de campo entre os Wari', tendo como
principal sede a aldeia do Rio Negro-Ocaia. Sua dissertação de mestrado, defendida
em 1989, no Museu Nacional, UFRJ, foi publicada como livro, Comendo como gente,
em 1992. Trata-se de um estudo do canibalismo wari', tanto literal quanto figurado,
com ênfase na cosmologia, guerra, xamanismo e rituais. Sua tese de doutorado
em antropologia social, Quem somos nós, analisa a questão da identidade e da
definição das categorias estrangeiro, inimigo e branco antes, durante e depois
da pacificação, contato e conversão ao cristianismo. Tem publicado vários artigos
sobre estas e outras questões.
Em 1996, Marlene Rodrigues Novaes (Unicamp) escreveu uma dissertação de mestrado
em antropologia social baseada em cinco semanas de trabalho de campo na comunidade
do PI Lage: A Caminho da Farmácia. Trata das representações indígenas das doenças
e tratamentos e das relações entre a medicina wari' e os serviços de saúde da
Funai.
Desde os anos 1950 a língua wari' vem sendo estudada por missionários da Missão
Novas Tribos do Brasil, que desenvolveram uma ortografia, transcreveram partes
da Bíblia e organizaram cartilhas e outros materiais didáticos. Seu trabalho
sobre a língua wari' tornou-se finalmente acessível com a publicação de uma
gramática descritiva, Wari': The Pacaas Novos Language of Western Brazil, escrita
por Daniel Everett, lingüista da University of Pittsburgh, e Barbara Kern, uma
lingüista da Novas Tribos que trabalha com os Wari' desde o início dos anos
1960.
Em trabalhos mais antigos se encontram referências básicas sobre os povos Txapakura,
como os capítulos de Métraux, "Tribes of eastern Bolivia and the Madeira
Headwaters: The Chapacuran Tribes", e de Lévi-Strauss, "Tribes of
the rigth bank of the Guaporé River", no Handbook of South American Indians;
o Mapa Etno-Histórico de Curt Nimuendajú e o seu artigo "As Tribus do Alto
Madeira"; as "Notes on the Moré Indians, Rio Guaporé, Bolívia",
de Rydén; os livros El Itenez Salvaje, de Leigue Castedo; Atiko y, de Snethlage;
e o artigo de Nordenskiöld "The Ethnography of South-America seen from
Mojos in Bolivia".